Imaginem que o jornal online
Observador, em vez de ser um órgão de propaganda da direita
neoliberal, criado e financiado por empresários conservadores empenhados em
impor na esfera política e em defender no espaço público uma agenda de
privatização de serviços públicos, desregulação económica, liberalização do
mercado de trabalho, destruição de direitos sociais e demonização do Estado,
fosse um projecto criado e financiado por pessoas ligadas à esquerda,
empenhadas em difundir um ideário de combate às desigualdades e à injustiça
social e em noticiar a actualidade a partir de um ponto de vista socialmente
empenhado e intelectualmente independente dos poderes vigentes.
É
evidente que, nessas circunstâncias, não veríamos um elemento do Observador a ocupar um lugar cativo nos
painéis de comentadores da RTP e, se por acaso esse jornal fosse alguma vez
citado por outros órgãos de comunicação social, seria identificado como “o
jornal de esquerdaObservador”
ou “o jornal Observador, ligado aos meios
da esquerda radical” e os jornalistas que assim o identificassem considerariam
estar a fazer uma descrição não só objectiva mas necessária da fonte em causa.
Porque
é que isso não acontece, simetricamente, e pelas mesmas razões, com o actual
jornal Observador e porque é que este não é
sempre apresentado como “o jornal de direita Observador” ou “o jornal Observador,
ligado aos meios da direita radical”?
Isso
acontece devido à hegemonia do pensamento conservador que considera “normal”
que se seja de direita, e portanto não digno de ser sublinhado ou sequer
referido, e “anormal” que se seja progressista, e portanto exigindo referência
que sublinhe esse “desvio”. Para este pensamento hegemónico, ser de direita não
é ser nada porque essa é a posição “natural”, enquanto ser de esquerda é ser
algo “não natural”. Era precisamente pela mesma razão que, durante o Estado
Novo, os apoiantes de Salazar “não faziam política”, por muito radicais que
fossem nesse apoio em todas as facetas da sua vida, e os oposicionistas eram considerados
“políticos”.
É
evidente que os jornalistas, de direita ou de esquerda, sabem que é tão
marcadamente ideológico ser de direita como de esquerda, mas por que razão
sublinham então uma coisa e passam a outra em branco? Em certos casos, por
mimetismo irracional. Muitos querem apenas to blend in e seguem a onda, imitam os colegas, as
revistas, os famosos, os gurus que aparecem nosmedia –
e estes são esmagadoramente de direita mesmo quando “não falam de política”.
Noutros casos, por mimetismo premeditado. Querem apenas passar despercebidos e
não pôr em risco o seu posto de trabalho. Noutros casos por cálculo. Querem
fazer carreira, seja onde for, e aprenderam na escola de antijornalismo por
onde andaram que a adulação funciona e que não se pisam os calos dos poderosos.
Noutros caso por medo. A direita conservadora está no poder e tem o dinheiro, a
força e muito da lei do seu lado. Noutros casos, devido ao ritmo industrial de
produção imposto na maior parte das redacções, que obriga a aproveitar a informação
primária tal como chega de algum centro de poder e a republicá-la sem tempo
para a editar, reconstruir, verificar seja o que for ou sequer pensar. Noutros
casos por pura distracção, porque o vento reaccionário é tão constante que se
torna hipnótico. Noutros casos ainda, uma minoria, por consciente adesão a um
modelo ideológico que se pretende reproduzir.
Estas
circunstâncias têm todas algo em comum. São todas contrárias à deontologia que
rege o jornalismo, que obriga a uma total independência dos poderes e à adopção
de uma atitude de equidade e saudável cepticismo em relação à informação
recebida das fontes, oficiais ou não.
Seja
qual for a razão em cada caso particular, é por isso que continuamos a ver os
noticiários cheios de citações nunca contraditadas de Pedro Passos Coelho, diga
este as inanidades que disser no seu escasso léxico e por frágil que seja a sua
situação política no interior do partido, e é por isso que qualquer pergunta a
um político de esquerda está sempre dedicada a tentar encontrar brechas no
entendimento parlamentar à esquerda, mesmo quando elas têm de ser inventadas
por uma edição imaginativa. Porquê? Porque é preciso sublinhar, em cada
momento, a contranaturalidade de um governo apoiado pela esquerda. Pensamento
hegemónico da direita dixit. É também por isso que
os pivots fazem
uma careta quando dizem o nome de um dirigente do PCP mas não quando dizem o
nome de um dirigente do PSD, numa demonstração de sectarismo que pode ser
inconsciente, mas não é por isso menos sectária. É por isso que, numa entrevista de Catarina Martins publicada neste
jornal, tem de ser colocada em título uma frase que dá a ideia
contrária ao pensamento expresso pela entrevistada (dando a impressão de que,
se fosse hoje, o BE não assinaria o acordo com o PS) mas que é conforme ao ar
do tempo, sempre hegemónico, da direita.
José Vítor Malheiros
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